Amor, Valor, Carência e Desfrute

O amor é um valor? Creio que o amor não seja “um” valor mas sim a fonte de todos os valores. Amar ou valorizar significa preferir, buscar, tender a. Santo Agostinho já intuía que o amor nos constitui, nos dá peso e substância [1]– gravitamos em torno dos objetos de nosso amor. Mas se o amor é a fonte de qualquer preferência e de toda motivação, ele não seria equivalente ao prazer e sua contraparte – a fuga da dor?

Reflexões sobre o amor sempre começam por referir o diálogo platônico do “Banquete” em que Fedro, Pausânias, Erixímaco, Agaton, Aristófanes e, por fim Sócrates, citando Diotima proferem seus discursos sobre o tema. É aí que Platão/Sócrates/Diotima caracterizam o amor Eros como desejo, falta, carência. Só desejamos o que nos falta e a satisfação mata o desejo. Paradoxalmente amamos a dor da falta. Lá, Diotima já afirma que este amor desejo é, no fundo, amor à vida ou desejo de imortalidade, que busca superar a morte pela criação ou parto tanto de filhos quanto de obras. Ela diz também que a maior falta humana é a da perfeição divina, causa da sua eterna hybris – o desejo de ser perfeito como os deuses. Já falei em outro texto que necessidade é carência pura, sentimento de falta sem objeto definido, e que o desejo surge pelo objeto que (se pensa que) satisfará aquela carência[2]. Falei também que o desejo acaba se tornando uma necessidade secundária – a carência do objeto. Creio que esta versão do amor como Eros faz sim uma equivalência do amor ao prazer como satisfação do desejo, satisfação que sacia e aniquila o desejo. Isso não se reduz ao prazer erótico ou sensual. O desejo do que lhe falta se fixa em quaisquer objetos ou experiências que a pessoa espera que venham a satisfazer suas necessidades e carências em geral. A satisfação da carência é um prazer que acaba com o desejo. Esta é a mesma fonte do entendimento de felicidade como hedonia[3]. Porém, talvez o desejo não se reduza à esperança de possuir ou desfrutar futuramente e se possa desejar o que se tem e o que se desfruta no presente.

Uma segunda visão do amor é encontrada em Spinoza e Aristóteles. O amor potente que ama o que desfruta e não o que lhe falta. É o amor Philia ou amizade de Aristóteles ou o amor alegria em Spinoza. Se Platão não erra no todo porque o desejo, sim, é uma forma de amor, pelo menos está errado em parte, porque podemos amar, e melhor, aquilo que desfrutamos, o que se traduz nas palavras de André Comte-Sponville “amar é desfrutar ou regozijar-se com algo”[4]. Entretanto, Aristóteles já apontava que a capacidade de amar e respeitar o outro, a amizade, tinha como base o amor-próprio ou autoconfiança – só quem confia em si pode confiar no amigo, mas jamais no inimigo. Aliás, a contraparte do amor é a violência, assim como o prazer tem sua contraparte na dor. Aí Comte-Sponville acusa que, no fundo, esse amor amizade permanece egoísta – “a mais alta virtude por seus efeitos, mas ainda estreita e mesquinha em seu alcance, quero dizer, quanto a seus objetos possíveis.”. Ele traz, então, uma terceira visão do amor proposta por Jesus Cristo: o amor Ágape que os latinos traduziram por Caritas. É o amor incondicional a tudo e a todos, sem motivo, sem interesse ou justificação, cujo protótipo é o amor divino por sua criação. Creio que, na verdade, a ideia deste amor divino idealizado é inspirada no amor maternal ou paternal, do qual temos a experiência real: um amor incondicional por sua criação que, entretanto, ainda padeceria da mesma estreiteza apontada contra o amor Philia.

Se é certo que essas três formas de amor têm características distintas e uma certa hierarquia entre elas, talvez elas estejam inextricavelmente ligadas e amarradas ao nosso corpo e nossa natureza animal. Digo isso porque, por mais que discorramos sobre sua natureza e hierarquizemos suas formas, o amor nunca deixará de ser um afeto no sentido spinozista: um sentimento que nos afeta, algo que nos acontece e que não se comanda. Nosso comportamento ou é causado por impulsos e desejos, ou visa um valor racionalmente reconhecido como seu motivo. Mas emocionalmente, valorizamos (amamos ou sentimos) mais a perda de um valor do que o seu desfrute. Só damos valor à saúde quando a perdemos. O ar e a água, tão fundamentais para a vida, só são valorizados quando faltam e não quando desfrutamos da sua abundância. Só a reflexão nos ajuda a valorizar de forma mais racional.

De qualquer forma, demonstramos nossos valores e o nosso amor pelo comportamento e não pelo discurso. Por exemplo, muitas pessoas dizem que amam a família e não o trabalho, mas não dedicam atenção aos familiares. Empresas condenadas por corrupção tinham nas suas paredes declarações de valores que colocavam a ética em primeiro lugar. Políticos sempre dizem trabalhar pelo bem comum em primeiro lugar, negando o interesse próprio, a vaidade e a sede de poder que na verdade são seus maiores motivos.

E você; o que lhe move? Está conseguindo se dedicar às suas paixões e ao que considera essencial na vida?

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[1]Meu amor é o meu peso. É ele que me leva onde quer que eu vá.” Santo Agostinho – Confissões

[2] http://jaimewagner.com.br/2022/04/14/duas-formas-de-felicidade/

[3] Ibid.

[4] Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, pg 129.