Amor e Valor

As palavras rimam, os significados se aproximam, mas o que significam? Difícil dar uma resposta conclusiva, pois seus significados se confundem numa multiplicidade de interpretações. A primeira confusão já ocorre quando pretendemos examiná-los. Como nos colocamos? Diante deles como se fossem objetos passíveis de descrição e conhecimento? Ou dentro de nós mesmos para perscrutar as sensações que experimentamos e que pretendemos identificar por aqueles nomes de amor e valor? Sim, porque ambos têm status múltiplos: são objetivos ou, pelo menos, intersubjetivos, na medida em que podemos falar sobre eles e descrevê-los; e são subjetivos, pois só serão verdadeiros se forem sentidos.

Amor

De um lado: carência, necessidade –pura sensação interna de falta, voltada para si, que ainda não se pode chamar de amor. De outro: admiração, respeito, cuidado, carinho, amizade, generosidade – voltados para outrem; resultado de experiência ou aprendizado. Essas formas de amor Philia – o amor potente e ativo que se regozija com seu objeto – proporcionam prazer ou alegria. O amor incondicional que os pais dedicam aos filhos é talvez a sua melhor tradução. O desejo fica entre a necessidade e o amor que se regozija com seu objeto, pois embora ainda seja sensação egoísta de falta, já se dirige a um objeto real ou imaginário que se espera que preencha a falta. Desejo é Eros – o amor impotente da falta de que nos fala Sócrates citando Diotima no Banquete; ou o amor cristalização de que fala Stendhal. Tanto em Eros como em Philia ocorre a atração para um objeto ao redor do qual gravitamos. Porém, Aristóteles apontou que mesmo a Philia pressupõe o amor-próprio. “É o que torna a amizade possível e o que limita seu alcance. A mesma razão que nos faz amar nossos amigos (o amor que temos por nós mesmos) nos impede de amar nossos inimigos ou mesmo, e por definição, o que nos é indiferente. Não saímos do egoísmo.” [1]. Cabe notar que nas formas objetais (Eros e Philia), o amor, embora dependa das características do objeto amado, não é ele mesmo uma característica deste objeto, mas sim um atributo conferido por quem ama – amar ou desejar é sempre um ato. Precisamos ter vontade para amar. E a paixão? Seria uma forma de amor? Creio que não, justamente porque a paixão é algo que nos acontece apesar da nossa vontade – um estado e não um ato. A paixão é a doença do desejo, uma forma de loucura que nos assalta – um estado de fixação involuntária no objeto.

Entretanto, a forma de amor mais pura e mais potente, traduzida pela palavra grega Ágape – o amor divino – corresponde a uma sensação de plenitude sem objeto, uma paz que é pura dádiva para com tudo e em que nada se torna indiferente. Infelizmente, a tradução latina Caritas se converteu em caridade, palavra deturpada ou assimilada a condescendência por parte dos poderosos. Seu significado original está mais próximo do Nirvana budista: um estado de bondade plena e de total desapego. Não se trata mais de atração do eu por um objeto, mas de expansão do eu para o todo, uma fusão do eu no todo: o amor por tudo. Talvez esta forma de amor divino só exista na imaginação, como um ideal impossível sempre no horizonte da capacidade humana.

Valor

Também aqui se parte da falta, da necessidade e da carência. O valor é sempre referente a um objeto que se espera que satisfará a falta sentida. Valor é sinônimo de importância e, em última instância, revelamos nossos valores pelas preferências que demonstramos em nosso comportamento, vale dizer, pelas prioridades nas decisões que determinam nossas ações diárias. Mas nem sempre essas decisões são racionais, já que é fácil confundir valor com desejo, pois “sentimos” diretamente no corpo a falta de algo, mas não temos a mesma sensibilidade para a sua posse. Só valorizamos a saúde quando doentes ou com dor. Valorizamos mais a companhia quando sós do que quando acompanhados.

Ao longo da história, a humanidade desenvolveu valores culturais e racionais, que pretendem se impor aos nossos impulsos e desejos como parte da nossa educação. Então, nós não criamos valores como indivíduos, mas os escolhemos entre aqueles ditados pelo instinto ou pela educação, e nosso comportamento ou é causado por impulsos e desejos, ou visa um valor racionalmente reconhecido como seu motivo. Mas, de qualquer forma, o valor que impulsiona a ação é o valor sentido e não o valor pensado, e o sentimento, que é o encontro da emoção com o pensamento, pode ser comandado por um ou pelo outro. Assim, temos dois tipos de vontades: agimos em função de deveres ou de desejos. Desejos são valores subjetivos que variam ao sabor das circunstâncias e do estado emocional. Podem ser impulsos momentâneos ou mais duradouros. Valores culturais são mais permanentes porque se assentam em princípios que se pretendem verdadeiros e se sustentam como tal quando examinados à luz do entendimento. Assim, há nos valores culturais uma objetividade baseada nas exigências da racionalidade, na necessidade reconhecida, ou ainda na norma social. Pode-se discuti-los a partir de um ponto de vista independente. Para os que não pensam, o desejo comanda, enquanto ações refletidas são fruto de avaliação e escolha deliberada, livre e responsável. Porém, a escolha consciente pode ser feita por prudência ou medo da sanção social. Faço, por isso, uma distinção semântica entre os termos dever e obrigação. Digo que obrigação vem de fora, imposta por um poder maior ou superior que nos comanda. O dever vem de dentro, sendo um valor reconhecido pela consciência como um bem maior, esclarecido pela reflexão. Submetemo-nos a uma obrigação, a uma força externa. Cumprimos um dever porque a nossa consciência, guiada pela razão, nos comanda a refrear o desejo imediato ou a enfrentar o medo em nome de um bem maior. O sentimento do dever é o alinhamento da emoção com o valor pensado. O risco é que esse sentimento se torne uma convicção. Convicção é exatamente uma crença entranhada, visceral, algo que sentimos no corpo. Uma convicção contrariada provoca emoções negativas que, quase sempre, impedem o diálogo e a reflexão. Aliás, muitas convicções se transformam em preconceitos que não podem ser criticados, e a reflexão, ao contrário, é necessariamente crítica. Uma crença se torna uma convicção pela repetição. Então, a grande maioria das pessoas “sente” os seus valores sem refletir sobre eles e assim seu comportamento e até suas ideias são comandadas pela emoção e não pela razão.

Entretanto, uma vida coerente requer decisões consistentes com uma escala de valores racionalmente defensável e razoavelmente estável, que não seja rígida e preconceituosa nem completamente flexível para justificar qualquer coisa. Então cabe perguntar: o que tem mais valor para você? Qual a sua escala de valores? Reagimos sem pensar para evitar custos e perdas, mas precisamos pensar para agir de forma a antecipar ganhos e gerar valor. A urgência emocional nos assalta automaticamente, enquanto a avaliação da importância de algo é uma deliberação racional que toma por base uma escala de valores. E poucas pessoas dedicam tempo a pensar sobre sua escala de valores, deixando que a necessidade e o desejo comandem suas vidas de acordo com as circunstâncias. Aqueles que têm valores próprios se guiam por eles e os justificam racionalmente, mas não devem impor seus valores aos outros, exceto aqueles resultantes do acordo social ou da moral vigente. Uma coisa é a legalidade – a moralidade das leis, que convém seguir por precaução e boa educação. Outra é a ética pessoal – as virtudes, que aquele que ama a verdade se impõe praticar.

Amar é Valorizar

Concluímos que amar e valorizar são atos voluntários do eu em relação a objetos reais ou imaginados. Considerações sobre o valor entram necessariamente na priorização de nossas ações diárias, que determinam o que fazemos do nosso tempo e da nossa vida, ou seja, dizem quem nós somos. Valorizar algo ou alguém, dedicando-lhe nosso tempo e nossa atenção, para mim, é “a” forma de demonstrar o que e a quem amamos.

[1] Comte-Sponville, A. (1999). Pequeno Tratado das Grandes virtudes. (E. Brandão, Trad.) São Paulo: Martins Fontes.