Epicuro e Kahneman

Prioridade da Ética sobre a Administração

Em 1977 me interessei por gestão do tempo segundo a visão estreita do tempo como um recurso do processo produtivo. Esta visão econômica voltada para produtividade e eficiência valoriza a rapidez e surgiu no fim do século XIX com a Ciência da Administração. A partir de 1996, com a PowerSelf passei a me aprofundar sobre o tema e a criticar aquela visão por considerá-la simplesmente errada. Desde lá, meu trabalho se norteou por dois princípios: 1) tempo é vida e; 2) não administramos o tempo nem nossas reações, mas sim nossas ações deliberadas – uma questão de prioridades.

As noções de que tempo é vida e não só trabalho e de que valor não é só dinheiro me levaram à filosofia e à ética. As diversas escolas éticas, desde sempre, propõem formas de alcançar a felicidade e viver uma vida boa, e nenhuma enfatiza a velocidade de resposta como um caminho para tal.

O Tetraphamakon de Epicuro

Na República Romana, a partir do século II a.C., duas correntes filosóficas gregas, estoicismo e epicurismo, competiam pela preferência das elites, oferecendo modelos éticos e existenciais racionais e autossuficientes. Enquanto o epicurismo busca a felicidade nos prazeres moderados e na ausência de dor, o estoicismo busca a felicidade na virtude e na aceitação do destino. O epicurismo tem uma visão mais individualista da felicidade, enquanto o estoicismo valoriza os deveres cívicos e a participação na vida pública, tendo influenciado muito o pensamento cristão e voltado à moda recentemente. Respeito ambas as escolas, mas me guio particularmente pelo tetrapharmakon de Epicuro: o quádruplo remédio para uma vida boa, traduzido em quatro conselhos.

  1. Sem medo dos deuses
  2. Sem medo da morte
  3. Pode-se ser feliz
  4. Pode-se suportar a dor

Sem medo dos deuses.

Para a  filosofia epicurista – materialista, mas não ateísta – o mundo é regido por leis naturais e não por forças sobrenaturais. Os males que porventura nos alcancem resultam do acaso ou de nossas escolhas e não da vontade divina. Para Epicuro os deuses seriam modelos de serenidade e autossuficiência, que não se ocupam das coisas terrenas.  Portanto, não há por que temê-los.

Sem medo da morte

Para Epicuro a morte é o fim da vida e de toda e qualquer sensação. A felicidade não está em desejar a imortalidade, mas em desfrutar e amar a vida a cada momento justamente pela noção de preciosidade que a crença na sua finitude certa lhe acrescenta. Se a morte é o fim de toda dor, não há sentido em tornar dolorosa a sua antecipação pelo medo, já que “enquanto existimos a morte não está presente, e quando a morte se apresenta nós deixamos de existir”[1].

Pode-se ser feliz

No epicurismo felicidade é sinônimo de prazer ou de satisfação de desejos, mas não o prazer hedonista, e sim  a eudaimonia alcançada por um estado de serenidade da alma (ataraxia) e ausência de dor no corpo (aponia). A ataraxia como caminho para a felicidade possível também era uma proposta estoica, entendida como ausência de paixões ou domínio da alma sobre as paixões do corpo. Para Epicuro, porém, a noção de ataraxia seria mais bem traduzida como ausência de preocupações e a moderação dos desejos seria a principal virtude para alcançá-la. Ele classificava os desejos em vazios ou naturais, dividindo estes em necessários ou não, conforme a seguinte tabela.

 

Categoria Características Definição Exemplos Orientação Ética
Naturais e Necessários Necessidades biológicas
essenciais
para a vida e a tranquilidade
Fáceis de satisfazer,
têm limites
naturais
Comida, água,
abrigo,
amizade, descanso
Devem ser
satisfeitos

Geram ataraxia (tranquilidade) e
aponia
(ausência de dor).
Naturais,
mas Não Necessários
Tendências naturais, mas não essenciais para a vida Prazerosos,
mas podem ser renunciados
sem sofrimento
Comida refinada, prazeres estéticos, conforto Opcionais
Podem ser desfrutados, desde que não gerem dependência ou ansiedade.
Vãos (Vazios)
e Infundados
Nem naturais,
nem necessários; surgem de
crenças falsas ou ilusões
Insaciáveis,
sem limite natural, geram ansiedade e frustração
Riqueza,
poder,
fama, imortalidade
Devem ser
rejeitados
São fonte de perturbação e sofrimento.

Pode-se suportar a dor

A atitude epicurista diante do sofrimento físico e mental baseia-se na ideia de que a dor não é um mal absoluto, pois ou é intensa, mas breve, e logo termina; ou é leve, mas prolongada, portanto, suportável. Portanto, a dor é sempre limitada no tempo ou na intensidade, e o sofrimento não deve ser motivo de desespero, pois nunca é intrinsecamente insuportável.

Kahneman e Epicuro

Em 2012 o livro  “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar ” de Daniel Kahneman veio a dar o embasamento teórico para meu trabalho na PowerSelf, confirmando minha intuição de que a ênfase na rapidez poderia ser um barco furado, e se tornou como que uma bíblia para mim.

Então, foi com grande surpresa e consternação que recebi a notícia de que Kahneman faleceu aos 90 anos em uma clínica de suicídio assistido em março de 2024, após tomar essa decisão por preocupações com a perda de controle mental e a possibilidade de sofrimento desnecessário no futuro. Essa decisão resistiu a várias tentativas de dissuasão por parte de familiares e amigos. Aparentemente, Kahneman estava contrariando o quarto remédio de Epicuro com o objetivo de afirmar o terceiro remédio.

Quatro dias antes de morrer Kahneman deu uma entrevista ao podcast “Lives Well Lived” onde demonstrou estar em plena posse de suas faculdades mentais e suficientemente saudável para desfrutar de amizades e da vida familiar. Ele não buscou justificar sua atitude, mas deu a entender que, embora acreditasse aos 90 anos tivesse completado sua missão de vida, achava que, objetivamente, de um ponto de vista universal, sua vida ou a decisão de terminar com ela, não tinham grande importância. Transcrevo abaixo o parágrafo final do artigo que os autores do podcast escreveram no Times.

“O professor Kahneman demonstrou preocupação de que, se não encerrasse a própria vida quando estivesse claramente mentalmente competente, poderia perder o controle sobre o resto da vida e viver e morrer com “misérias e indignidades” desnecessárias. Uma lição a aprender com sua morte é que, se quisermos viver bem até o fim, precisamos ser capazes de discutir livremente quando uma vida está completa, sem vergonha ou tabu. Tal discussão pode ajudar as pessoas a saberem o que realmente desejam. Podemos nos arrepender de suas decisões, mas devemos respeitar suas escolhas e permitir que encerrem suas vidas com dignidade.”[2]

[1] Epicuro,  “Carta a Meneceu”

[2] https://www.nytimes.com/2025/04/14/opinion/daniel-kahneman-death-suicide.html