Em 2003 publiquei A Arte de Planejar o Tempo. Em 2007 comecei a escrever Tempo e Razão, que “vem sendo reescrito e desescrito a partir daquele primeiro livro e cuja publicação eletrônica me permite aprimorá-lo continuamente”. É uma obra que evolui e amadurece conforme o meu próprio aprofundamento sobre o tema do tempo. Por isso, este livro nunca será impresso em gráfica nem será encontrado em livrarias, estando disponível somente no site da PowerSelf, na Amazon e no site da Horus Consultoria. Estou publicando agora a versão 6-10, “que representa um avanço, mas comprova que sempre há muito a aprender”. Além de outros, o principal adendo desta versão é a seção que tem o mesmo título do livro: Tempo e Razão e que reproduzo a seguir.
1.1. Tempo e Razão
A consciência do tempo é a origem da racionalidade do homem.
“Consciência do tempo significa um conhecimento vívido das três categorias temporais: passado, presente e futuro. Nenhum outro animal está dotado de um conhecimento do tempo comparável ao do homem. É uma faculdade que cresceu em acuidade a par do desenvolvimento da mente humana, cujo crescimento se reflete na crescente habilidade do homem de controlar e explorar seu ambiente físico. […] Que podia ser vista, já com toda sua futura potencialidade, na atividade do homem paleolítico. Pois, ao desbastar um machado de pedra, aquele nosso ancestral distante estava recorrendo à experiência passada de tais machados no presente, para prever contingências futuras.” (Brandon, 1971)
Dirigir a ação presente usando conhecimento e experiência do passado para prevenir ameaças e satisfazer necessidades antevistas no futuro e não apenas reagir a demandas imediatas é o que se chama ação racional e é o que distinguiu e enriqueceu a vida humana entre todas as espécies. Esta é a essência do conceito de “trabalho”: esforço presente usando conhecimento passado visando resultado futuro. Trata-se de um investimento da memória, uma projeção mental e emocional para o futuro, cuja acumulação cria ciência e tecnologia. Isso, no entanto, tem seu preço: a dificuldade de desfrutar o aqui e agora. O pecado original de usar o conhecimento passado para viver para o futuro é acusado por filosofias, religiões e também pela ciência. Cultos e terapias, e até a embriaguez alucinógena, buscam resgatar a mente da “tirania do tempo”, recriando a sensação de um eterno presente, correspondente à inocência da vida puramente animal.
A perda da inocência, entretanto, cobra um preço ainda maior: a consciência da própria mortalidade. A irreversibilidade deste conhecimento que não pode mais ser esquecido é paralela à consciência da inexorabilidade própria do tempo e origem de uma agonia que só aumenta com a passagem dos anos: a certeza da morte como marca e termo da vida. Ironia da razão: a consciência do tempo que permite ao homem se proteger contra a incerteza do futuro lhe dá a certeza de que não há como se proteger contra a morte. Brandon diz que “temos muitas razões para pensar que a origem mesma da religião se encontra na reação do homem ao profundo senso de insegurança gerado pela sua consciência do tempo. Pois toda religião, em última análise, se preocupa com a morte, [e] promete [ ] alguma forma de seguro post-mortem ou uma maneira de escapar do processo inexorável de declínio e morte imposto pelo tempo.” (ibid.). A consciência da própria mortalidade implica em um tanto de sofrimento psicológico, mas produz também o sentimento de urgência que impulsiona o trabalho humano como um poderoso motivador para deixar a zona de conforto daquele éden de ócio atemporal do eterno presente.
A consciência do tempo gera a racionalidade, que projeta a humanidade para o futuro, num trabalho conjunto cada vez mais complexo de acumulação de conhecimento e geração de tecnologia cuja lógica é facilitar a vida humana na Terra. Esse processo de acumulação e aceleração é realimentado positivamente – um fenômeno do tipo bola de neve, cuja tendência é aumentar indefinidamente se não houver algum freio. Na Antiguidade a vida e os relógios de sol eram locais. A disciplina do trabalho na terra era regida pelos ciclos naturais de dias, noites e estações. Com a invenção do trem no século 19 surge a necessidade de homogeneizar a medida do tempo entre cidades e a pontualidade passa a ser uma virtude. O tempo social deixou de ser regido pelos astros e passou a ser regido por mecanismos – o tempo natural se tornou artificial. A pontualidade da Revolução Industrial amarrou a humanidade aos horários dos trens e das fábricas. Na Era da Informação ela está sincronizada segundo a segundo, num ritmo cada vez mais acelerado. Jean-Louis Servan-Schreiber colocou isso lindamente: “Sem perceber, o homem civilizado, como Gulliver em Lilliput, encontra-se preso por milhões de tênues fios. Isolados, mal são percebidos; juntos, privam-no da sua liberdade.” (Servan-Schreiber, 1991) Os danos colaterais do progresso se fazem sentir não apenas no equilíbrio ecológico do meio-ambiente mas também no equilíbrio emocional dos seres humanos. A adaptação natural do cérebro é muito mais lenta do que a evolução tecnológica e somos tomados por emoções negativas diante do ritmo literalmente alucinante dos estímulos da sociedade da informação. Aquele que está dentro do avião do progresso parece viciar-se em excitação constante que o impede de parar – uma euforia cuja contraparte é uma ansiedade crônica. Quem cai do avião devido a um burnout por estresse, ou quem não tem possibilidade de entrar na corrida, sofre com baixa autoestima e arrisca cair em depressão. Ironia do progresso: as facilidades que proporcionam prazer e facilitam a vida produzem um comportamento viciado e roubam a paz de espírito.
Referências:
Brandon, S. G. (1971). Time as an interdisciplinary topic. Religion, I(2). doi:10.1016/0048-721x(71)90022-4
Servan-Schreiber, J.-L. (1991). A Arte do Tempo. São Paulo: Cultura Editores Associados.