Ignorância e Incerteza

Ignorância e incerteza são sinônimos?
Desde sempre a inquirição sobre os limites do conhecimento, a epistemologia, é um tema predileto da filosofia. Parmênides e Platão negaram o valor cognitivo dos sentidos e afirmaram a verdade maior das idéias inatas. Os sofistas, ao contrário, defendiam o relativismo moral, afirmando que o conhecimento é sempre sensitivo e subjetivo. Afora o interregno cético e a dúvida dogmática de Pirro, que negava qualquer possibilidade de conhecimento da verdade, e recomendava a suspensão do juízo como máxima sabedoria, a dúvida foi sempre evitada. A mente, sede do espírito ou da alma, cujo conteúdo é o mundo subjetivo, foi resguardada pela aura de mistério no campo do divino inescrutável à razão, mas aberto à fé pela via da graça, enquanto o mundo objetivo, incluindo o corpo humano, ficou no campo da ciência, aberto à descoberta racional de suas leis. Esta dualidade cômoda foi atacada no século XIX pelo positivismo, resultando no surgimento das ciências humanas. O determinismo avançou, escorado no materialismo, como se fossem pensamentos gêmeos.
O maior orgulho do homem ocidental (mais do que a arte e muito além da moral) é a ciência. A cadeia das causas e efeitos, a harmonia matemática da natureza e as leis que os regem parecem ser segredos abertos à razão e suas infinitas possibilidades de conhecimento. O desenvolvimento tecnológico, a dominação das forças naturais a serviço do homem e a criação de um mundo artificial são provas reais das possibilidades aparentemente incomensuráveis do conhecimento científico, que se confirma nas suas previsões e realizações reforçando o orgulho das certezas, transformando-as em convicção. Certeza de conhecimento, convicção de poder: reforço e confirmação mútuos, que se recriam e reafirmam sucessivamente. A confiança no poder da ciência confunde-se com a convicção da certeza na determinação dos eventos. Incerteza torna-se sinônimo de ignorância. Para o homem medianamente esclarecido, a ciência se transmuda em fé no progresso humano, fé que não admite o pecado da dúvida.
A escrita, a fotografia, e outras formas de registro parecem transformar o passado em presença objetiva, enquanto a arquelogia e a história o tomam como objeto de estudo científico objetivo. Ao mesmo tempo, as ciências físicas parecem dotar o futuro da mesma categoria de certeza objetiva pelo determinismo de suas leis.
Se o orgulho das ciências físicas e da tecnologia é uma das características distintivas da cultura ocidental, sua outra marca é o entendimento da ética como uma espécie de ciência moral, dentro da tradição socrática e estóica. A ética, filosofia da ação, ciência da decisão, da escolha de acordo com valores objetivos, em harmonia com a Natureza e o destino natural das coisas.
Epicuro já apontava o paradoxo: há liberdade de escolha e responsabilidade se a resposta já está dada de antemão? “Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato, mais vale aceitar o mito dos deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os deuses, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade inexorável”.[1] Prigogine, daonde retirei a citação remarca: “embora os físicos de que fala Epicuro sejam os filósofos estóicos, esta citação soa de maneira espantosamente moderna!”[2]
Até na matemática probabilística, o determinismo impera. Incerteza se define como ignorância, o inverso da informação. De fato, Shannon define informação como o inverso da entropia. “A entropia pode ser considerada uma medida da ignorância. Quando sabemos que um sistema está num dado macroestado, a entropia do sistema mede o grau de ignorância acerca do seu microestado, contando os bits de informação que seriam necessários para especificá-lo considerando todos os microestados possíveis como equiprováveis”.[3] Mesmo depois da relatividade e da física quântica, o universo científico permaneceu determinista. “Por um lado, há a equação de Schrödinger, que descreve de maneira perfeitamente determinista como a função de onda de qualquer sistema evolui no tempo. E depois, de maneira perfeitamente independente, há um conjunto de princípios que nos dizem como usar a função de onda para calcular as probabilidade dos diferentes resultados possíveis produzidos a partir de nossas medições”[4]
O uso de uma equação probabilística reflete ignorância sobre as condições iniciais ou, ao contrário, a incerteza é um elemento constituinte da realidade, e a ignorância maior é a de quem pretende (tanto no sentido de querer quanto no de fingir) ter certeza?
O que está na base do novo paradigma científico da teoria do caos, que muitos ainda não entenderam, é exatamente isso: as leis da natureza não mais se assentam em certezas, mas sobre possibilidades, no sentido de um futuro aberto à evolução. A incerteza que está na base da probabilidade não é ignorância, mas sim a própria essência do futuro.
O interessante é que cerca de 200 AC, os fundadores da Segunda e da Nova Academia, criada por Platão séculos antes, numa reinterpretação dos muitos aspectos dos ensinamentos Socráticos, se imbuíram de argumentos céticos, negando a certeza e adotando uma visão probabilística para a condução da vida. Nada sobrou dos escritos de Arcesilau (315-241AC), mas Sextus Empiricus relata seus ensinamentos de uma filosofia das probabilidades. Carnéades (214-129AC) é um pouco menos desconhecido e fundava sua filosofia sobre três princípios: 1) nem os sentidos nem a razão podem fornecer certeza alguma; 2) a incerteza essencial do futuro; 3) a justiça é apenas uma instituição humana. Infelizmente, seus discipulos sentiram-se paralisados pela dúvida e degeneraram numa escola de filosofia “para oradores”, buscando a eloqüência e o poder, como uma arte, mais do que a verdade, como ciência.
Este é o problema maior da incerteza: para enfrentá-la é preciso coragem e confiança. A dúvida é insuportável para os fracos de caráter. Estes preferem o conforto do mito, ou a ignorância sistemática como método. O método da ignorância sistemática, o não querer nem saber, no fim das contas, se aproxima muito do niilismo budista, e paradoxalmente, junta na mesma atitude o hedonista e o estóico. A ignorância sistemática é o que eu chamo de solução da abóbora: afundar-se na rotina e no presente, justificando que pensar não leva a nada e nada importa a não ser o presente, já que o futuro é incerto. A diferença entre o hedonista e o estóico é que um escolhe (ou colhe, no dizer de Horácio) o prazer e outro escolhe aquilo que considera ser o destino inevitável.

[1] Epicuro. Doctrines et Maximes. Trad. francesa de M. Solovine. Paris: Hermann, 1938. p.80.[2] Prigogine, Ilya. O Fim das Certezas. Trad. Roberto Leal Teixeira. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. p.18.[3] Gell-Mann, M. The quark and the Jaguar. London: Little Brown & co., 1994. p. 220.[4] Weinberg, S. in Scientific American, v.271, n.4, p.44, outubro 1994.

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