Tempo Partilhado – Vida Quebrada
O relógio deixa de ser um instrumento para tornar-se o ditador supremo da vida. Todos esquecem o porquê dos relógios e dos horários, esquecem que marcam hora para sincronizar a sua vida com a dos outros de modo interdependente. O cumprimento do horário se torna mais importante do que a interação em si, o relógio importa mais do que o outro. Pior, ao invés de assumir compromissos de forma espontânea e integral, alguns se comprometem com “o relógio” de forma automática e dependente. Encaram os compromissos como algo a que devem se submeter contra a vontade, uma obrigação sem liberdade de escolha. Com esta atitude, externalizam a responsabilidade. E então o “eu”, agente autônomo, já não está lá. Agem como vítimas do compromisso, o qual se torna um símbolo da sua fraqueza, um reforço negativo para sua auto-imagem. Ter compromissos, ter “hora”, torna-se um fardo. Atlas esmagado sob o peso do mundo.
A tendência geral é compartimentalizar a vida em horários e em personalidades bipartidas. Das 8 às 18h , existe uma pessoa, das 18h em diante, outra. Parece que não se age mais como pessoa integral, pois personalidades distintas são incorporadas em função do horário. Pior, são personalidades em conflito umas com as outras, dentro da mesma pessoa, de modo neurótico. Foi-se a inteireza e, talvez até, a integridade.
Tempo Consumido – Vida Vazia
Todos têm as mesmas 24 horas por dia. O que se faz com elas se chama vida. Ter tempo significa ter vida. Mas pode-se “ter” vida? Esta é uma outra face da confusão dos tempos modernos, que gira em torno do conceito de emprego e que embala o adágio de que “tempo é dinheiro”.
Tempo é muito mais do que dinheiro. Conseguir dinheiro é uma questão de tempo, mas o inverso não é verdadeiro. Tempo não é uma questão de dinheiro. Tempo é vida. E o valor da vida não tem preço. Meu tempo é minha vida. É tudo que me acontece e que eu faço acontecer. Administrar bem o tempo é viver bem. Mas a questão é: o que é viver bem? Esta é uma questão ética, questão de valores e prioridades. Na sociedade de consumo parece que viver bem é ter dinheiro para comprar o que se quiser. Será mesmo?
Todos dizem que trabalham para ganhar a vida, para subsistir, ter o que comer e vestir, onde dormir. Porém, imagine que você perdesse o emprego ou a sua fonte de sustento. Você, realmente, não teria onde dormir, não teria o que comer e vestir? Ou poderia perfeitamente viver com menos, aceitando a ajuda ou mesmo a dependência de outros? Embora a maioria das pessoas não tenha problemas efetivos de subsistência, parece que todos têm urgência em ganhar a vida para sobreviver, o que se traduz em fazer coisas que gerem dinheiro para pagar as contas. Mas estas contas devem-se, em grande parte, à forma consumista como se usa o tempo livre. Ao invés de usá-lo de forma produtiva e criativa, a grande maioria das pessoas utiliza o seu tempo livre em consumo, sem grande correlação com qualquer necessidade efetiva. O próprio lazer virou mercadoria. Assim, o tempo do trabalho é visto como o tempo que se vende e não como um período livre para criar, produzir e contribuir. O próprio trabalho é encarado como um encargo necessário e não como uma contribuição espontânea. Em que isso difere de uma mentalidade escrava?
Todos são chamados a consumir através de apelos mais ou menos sutis, que mexem com as emoções e interferem nas noções de valor. Na sociedade de consumo tudo vira mercadoria. A noção de valor é expressa em cifras. O dinheiro é o ídolo, e o mercado é o juiz supremo. A religião já ocupou este lugar. Na sociedade medieval o valor se expressava na salvação e o juiz era a Igreja. Ter e possuir cada vez mais coisas torna-se, em muitos casos, um outro vício, sem relação com as noções de necessidade e utilidade. Pessoas tomam “banhos de loja”, compram de forma compulsiva e consomem acima das suas possibilidades financeiras, endividando-se e criando uma poderosa carga de estresse adicional.
A sociedade moderna cultua o mito do ócio como ideal de vida, e o trabalho duro como caminho para atingi-lo. Depois de “ganhar a vida” vendendo suas horas de trabalho, o empregado visualiza a aposentadoria como um éden de ócio, sem nada para fazer. Trabalha como escravo do tempo, como se criasse uma poupança de tempo futura, quando, então sim, irá viver “sem ter nada para fazer”. Em horizontes de tempo mais estreitos, a história se repete. Trabalha-se durante a semana para “viver” no fim de semana. Trabalha-se um ano para “gozar” nas férias. E, então, a superficialidade cobra seu preço na forma de tédio. Após algum tempo ocupando-se com distrações, o vazio de uma vida sem sentido torna o ócio insuportável.
De fato, o tempo do lazer é aquele em que se desenvolve uma atividade livre da pressão da necessidade, mas cujo sentido, significado e finalidade são dados pela própria pessoa. Não se trata apenas de “matar o tempo”, mas de preenchê-lo com algo que conduza à realização pessoal. Este lazer, produtivo e criador, absorve; a pessoa usa todas as suas energias e, paradoxalmente, se revigora. Ou seja, o verdadeiro lazer é uma forma de preencher o tempo de modo produtivo e livre. Portanto, o lazer pode acontecer no trabalho. Não naquela forma de trabalho alienado em que se troca tempo (e vida) por dinheiro. Mas no trabalho que dá sentido à vida da pessoa, que desenvolve suas potencialidades, que lhe permite estabelecer vínculos afetivos e de cooperação com outros.
No entanto, o lazer moderno tornou-se um produto de consumo para o tempo ocioso. Todo um setor de serviços oferece lazer empacotado, pré-pronto, na forma de distração de consumo rápido. O lazer não é mais desfrutado, mas consumido ansiosamente. São tantas as opções que o afã de lazer estressa tanto quanto o trabalho. E a superficialidade acaba por entediar, exigindo cada vez mais doses de distração. Este tipo distorcido de lazer torna-se também um vício, avidamente buscado e proporcionado em doses maciças pela sociedade de consumo.
Além disso, a confusão tempo/dinheiro leva a querer “poupar” tempo. Deixar para depois toda a realização mais significativa, que sempre envolve uma aplicação mais demorada, sem frutos imediatos.
Pensa-se antes no dinheiro renovável e esquece-se do tempo insubstituível. Todos esquecem que o consumo implica demandas sobre o tempo. Por exemplo, uma pessoa que deseja comprar um barco, pensa antes nas suas possibilidades financeiras, sem levar em conta o tempo necessário para escolher, desfrutar e manter este novo brinquedo que, eventualmente, dadas as suas outras prioridades, poderá ficar sem uso.
Os valores pós-modernos da sociedade de consumo não se harmonizam com muitas das “virtudes aristotélicas”: a moderação, a justiça, a solidariedade e talvez até a integridade, mas principalmente, o amor. Cria-se uma versão de consumo empobrecida da velha história da música de Casablanca, que serve de epígrafe a este capítulo, em que “a luta por amor e glória” torna-se uma “luta por sexo e dinheiro”.