Podemos ter uma boa noção das horas. Mas horas, minutos, segundos, dias e anos são formas de medir o tempo. E o que eles medem? O que é tempo? O filósofo, aliás, ao invés de perguntar as horas, indaga “o que é o tempo” como fez Santos Agostinho por volta do ano 400 dc. No livro Confissões ele inicia um capítulo indagando: “O que é tempo? Certamente o entendemos bem quando falamos nele. O que é então tempo?” E ele completa singelamente “Se não me perguntam eu sei, mas se desejo explicá-lo a alguém simplesmente eu não sei.”
O tempo é paradoxal. É algo que nunca se tem mas sempre se perde. É efêmero e passa, mas permanece e dura. Estamos dentro dele, mas ele está dentro de nós. Sabemos medi-lo perfeitamente, mas não sabemos explicá-lo. A palavra tempo é um caso clássico de conflação, que é a fusão de significados distintos em um único termo, o que gera confusão. Vamos explorar estes significados
Hoje a filosofia diz que o tempo existe objetivamente como movimento; intersubjetivamente como convenção; e subjetivamente como atenção ou disciplina. Para o universo, tempo é movimento. Para a humanidade, o tempo é uma convenção que permite sincronizar a vida em comum, principalmente o trabalho. Para o indivíduo, tempo é atenção e hábito.
O tempo movimento é objetivo, está fora da mente, acontece mesmo sem ser percebido. Tudo está em movimento no universo. Não percebemos o tempo diretamente, mas sim o movimento: o deslocamento no espaço-tempo. Aristóteles já dizia: “O tempo não existe sem mudança. O tempo é a medida do movimento com vistas a um antes e um depois.”.
Uma coisa é perceber e sentir o movimento. Outra coisa é pensar o espaço-tempo geométrico, a ideia matemática de quatro dimensões inventada pelos gregos: retas infinitas e ortogonais, invólucros de tudo que acontece. O tempo se torna assim um ente abstrato: uma dimensão. Mas Einstein provou que esse tempo objetivo, que mede o movimento, é relativo, pois varia com o próprio movimento que mede: o relógio gira mais devagar quando se desloca mais rápido. O tempo dimensão absoluta não existe, é apenas um artifício da compreensão. O tempo objetivo é movimento que mede a si mesmo relativamente a movimentos cíclicos: giros dos astros, oscilações dos pêndulos e dos elétrons, decaimento dos átomos.
Muita gente confunde a relatividade do movimento demonstrada por Einstein com a relatividade óbvia de uma outra noção de tempo elaborada originalmente por Santo Agostinho. Trata-se do tempo subjetivo que existe dentro da nossa mente na forma de atenção.
O passado existe? Já não existe mais como movimento, mas existe dentro de nós como atenção à memória, seja na forma de lembrança, seja na forma de conhecimento que liga efeitos presentes a causas passadas. E o futuro existe? O futuro ainda não existe como movimento, mas existe na nossa mente como expectativa. Então, qual tempo existe objetivamente? E você dirá: “o presente, o agora”. Mas agora quando? “Este instante”, responderá você. Mas qual? Ao tentar conscientizar-se do instante que foge, você verá que o que você chama de agora ou de presente não é um instante, mas sim uma vivência com duração, que integra o passado imediato ao futuro iminente, um gerúndio que descreve algo que começou e ainda não terminou, uma experiência subjetiva ligada à atenção à percepção dos sentidos, à expectativa e à memória.
A vivência do presente é a própria sensação de duração – a essência do tempo. Mas uma coisa é a duração objetiva, o intervalo entre dois eventos, medido em ciclos de outro movimento. Outra coisa é a sensação de duração subjetiva, uma percepção com intensidade de experiência mais do que medida objetiva. Cinco minutos duram muito mais para quem espera do que para quem é esperado. O senso comum confunde essa relatividade da intensidade da experiência, que é facilmente percebida com a relatividade do movimento objetivo medido pelo relógio, apontada por Einstein, e que não é intuída diretamente.
O tempo medido objetivamente também é um tempo social, convencional, que serve muito mais para disciplinar a conduta coletiva do que para marcar durações relativas. Relógios e calendários não apenas registram a passagem do tempo cronológico, mas principalmente servem para marcar e anunciar as coisas que fazemos com outras pessoas, eventos de sincronização da vida em comum.
Na Antiguidade a vida e os relógios de sol eram locais. A disciplina do trabalho na terra era regida pelos seus ciclos naturais de dias e noites e estações. Só com a invenção do trem no séc. 19 surge a necessidade de homogeneizar a medida do tempo entre cidades e a pontualidade passa a ser uma virtude. O tempo medido, que rege a vida em comum, deixou de ser regido pelos astros e passou a ser regido por mecanismos. O tempo natural se tornou um artifício. A pontualidade da Revolução Industrial amarrou a humanidade aos horários dos trens e das fábricas. Na Era da Informação ela está sincronizada segundo a segundo, num ritmo cada vez mais acelerado. Jean-Louis Servan-Schreiber colocou isso lindamente: “Sem perceber, o homem civilizado, como Gulliver em Lilliput, encontra-se preso por milhões de tênues fios. Isolados, mal são percebidos; juntos, privam-no da sua liberdade
Esta dualidade entre o tempo que escoa sem parar e os eventos que marcam a vida em comum já era ilustrada na Grécia homérica pelos mitos dos deuses Cronos e Kairos. Cronos era o pai de todos os deuses, mas tinha o mau hábito de devorar seus filhos. Representa o tempo quantitativo que passa, contado em horas, dias, anos: nascemos nele e somos devorados por ele. Kairos era um deus jovem com asas nos pés e duas lâminas nas mãos, uma delas equilibrando uma balança. Além disso, tinha um longo topete na testa e a nuca completamente careca. Kairos representa o tempo qualitativo da oportunidade: acontecimentos bons ou maus (daí a balança) que marcam a o tempo e a vida em antes e depois – por isso a lâmina. Perdas acidentais são certas, ganhos requerem ação. A oportunidade passa rápido (as asas nos pés), se não é aproveitada se perde – não se pode agarrar Kairos pela careca. Mas oportunidade também se cria: planejar ou prevenir significa pegar Kairos pelo topete. Kairos também significa “momento certo” ou propício para agir de maneira a alterar o destino. Kairos não é contado em unidades de tempo, mas em eventos significativos que ficam na memória de forma descontínua. É o tempo das histórias que contamos, inclusive a história de nossas vidas.
Para valorizar o tempo muitos dizem que “Tempo é dinheiro”. Eu digo que tempo é vida, e vida é muito mais do que dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é pensar no tempo como trabalho e que vida é outra coisa que se faz no fim de semana ou nas férias. E que se vai viver mesmo depois da aposentadoria. Uma loucura! O tempo do trabalho seria dever e responsabilidade num tempo comum e o tempo da vida seria prazer e liberdade num tempo pessoal. Na sociedade de consumo trabalha-se para ganhar dinheiro para poder consumir. Como se a vida fosse consumo e o trabalho não fosse vida, e como se fora do trabalho não tivéssemos deveres e problemas a resolver.
O tempo do universo é o movimento. Os astros mais próximos regulam os ritmos periódicos dos seres vivos com seus movimentos circulares. Sentimos esse tempo com nossos relógios biológicos, que determinam nossos hábitos mais básicos. Este é o tempo sentido da vida animal: circular, periódico, rítmico e contínuo.
A humanidade como valor é feita de cooperação no presente, compromisso para o futuro e comemoração do passado. A sincronização no presente e a marcação do futuro e do passado requerem relógios e calendários. Relógios que começaram naturais seguindo o Sol e se tornaram artifícios, que, além de ritmos, medem intervalos e marcam prazos – um tempo linear e histórico. O tempo medido é um tempo marcado de forma convencional. Convenções também marcadas em nós na forma de hábitos de cooperação aprendidos.
Só podemos administrar aquilo sobre o que tenhamos algum poder ou influência. O tempo movimento do mundo e o tempo marcado pelo relógio social não são nossos e, portanto, não podem ser gerenciados por nós.
O que podemos chamar de “nosso tempo” é a nossa atenção, que podemos aprender a dirigir para ter algum controle. Atenção que, dirigida à memória recria o passado, dirigida à expectativa cria o futuro, e dirigida ao presente é percepção ou ação – voluntária ou não. Ação que também é movimento no tempo do mundo e fica marcada na história comum.
A ação voluntária cria o futuro na forma do valor que a motiva. A reação involuntária é mera consequência necessária de causas passadas. Quando agimos criamos futuro. Quando reagimos somos determinados pelo passado.