Tempo Sincronizado – Vida Amarrada
Esta é a era das organizações e dos sistemas. A complexidade da vida moderna, desde as atividades mais rotineiras até as mais elaboradas, exige o trabalho conjugado de várias equipes. A contribuição individual autônoma do inventor solitário ou do artesão, praticamente desapareceu, exceto, talvez, nas artes. O trabalho é tão complexo e envolve a mobilização de tantos recursos que apenas uma organização ou uma rede de relacionamentos pode levá-lo a cabo.
Ora, para que tantas pessoas trabalhem de maneira organizada, com objetivos comuns, é preciso que as suas vidas estejam sincronizadas. Criam-se amarras de tempo entre elas, pois a organização requer controle centralizado da sincronização das partes. Foi nos mosteiros da Europa medieval que os relógios imprecisos (clepsidras) e locais (relógios de sol) até então usados começaram a ser substituídos por relógios mecânicos mais precisos e universais. O termo horarium é cunhado para atender à necessidade de estruturar e regular o trabalho no mosteiro e na comunidade em torno do tempo dedicado à oração, marcado por relógios mecânicos e anunciado por sinos para sincronizar a todos.
Com a aceleração dos eventos, a necessidade de sincronização se afina. Já não são mais os carrilhões a marcar as horas, mas bips eletrônicos a soar a cada segundo. A economia globalizada funciona como um grande sistema que encerra todo o planeta numa malha de horários, que regula as trocas e interações mútuas. Em todas as esferas de suas vidas, as pessoas estão sincronizadas segundo a segundo, num ritmo único e cada vez mais acelerado, marcado por horários de trabalho, de estudo, de refeições, de reuniões, dos bancos, das lojas, das bolsas, do noticiário, da TV, do esporte, do cinema e do teatro. “Sem perceber, o homem civilizado, como Gulliver em Lilliput, encontra-se preso por milhões de tênues fios. Isolados, mal são percebidos; juntos, privam-no da sua liberdade.”[1]
Tempo Partilhado – Vida Quebrada
O relógio deixa de ser um instrumento para tornar-se o ditador supremo da vida. Todos esquecem o porquê dos relógios e dos horários, esquecem que marcam hora para sincronizar a sua vida com a dos outros de modo interdependente. O cumprimento do horário se torna mais importante do que a interação em si, o relógio importa mais do que o outro. Pior, ao invés de assumir compromissos de forma espontânea e integral, alguns se comprometem com “o relógio” de forma automática e dependente. Encaram os compromissos como algo a que devem se submeter contra a vontade, uma obrigação sem liberdade de escolha. Com esta atitude, externalizam a responsabilidade. E então o “eu”, agente autônomo, já não está lá. Agem como vítimas do compromisso, o qual se torna um símbolo da sua fraqueza, um reforço negativo para sua auto-imagem. Ter compromissos, ter “hora”, torna-se um fardo. Atlas esmagado sob o peso do mundo.
A tendência geral é compartimentalizar a vida em horários e em personalidades bipartidas. Das 8 às 18h , existe uma pessoa, das 18h em diante, outra. Parece que não se age mais como pessoa integral, pois personalidades distintas são incorporadas em função do horário. Pior, são personalidades em conflito umas com as outras, dentro da mesma pessoa, de modo neurótico. Foi-se a inteireza e, talvez até, a integridade.
[1] SERVAN-SCHREIBER, Jean-Louis. A Arte do Tempo. S.Paulo, Cultura Editores Associados, 1991.