O caráter do brasileiro, mestiço por excelência, tem vários traços já apontados na literatura: a cordialidade, a tolerância, o fatalismo apático. Mas creio que um aspecto nunca foi devidamente analisado. O brasileiro, filho de pai português e mãe índia, sofre da síndrome do bastardo. Para deixar claro, bastardo é a versão culta do termo chulo fdp, e designa o filho gerado fora do matrimônio.
O perfil psicológico típico do fdp é o do enjeitado. Tem raiva do pai, vergonha da mãe e baixa auto-estima. É filho do erotismo, mais propenso à expressão do que à sublimação do instinto. Portanto, não tem apreço pela família como instituição e dificilmente será um pai devotado ou marido fiel, tendendo a reproduzir o seu perfil em uma nova geração de filhos bastardos.
Por que o Brasil e os EUA tiveram índices de desenvolvimento econômico tão distintos, tendo ambos a mesma idade e extensões territoriais semelhantes? Obviamente, a diferença é cultural. A culpa é dos portugueses. Sempre é.
Uma explicação corrente ressalta a diferença de atitude em relação à riqueza entre a ética católica dos ibéricos e a ética protestante do colono americano. Para o catolicismo “é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Já, a ética protestante considera sinal de virtude a riqueza oriunda do trabalho. Creio, entretanto, que a síndrome do fdp se constitui em distinção ainda mais fundamental, que nunca foi devidamente ressaltada. Mais do que a Igreja, a família é a célula mater para a geração e reprodução dos valores morais e do caráter de um povo.
A família é uma criação eminentemente feminina. Para passar adiante os seus genes, a mulher conta com poucos óvulos, relativamente aos milhões de espermatozóides masculinos. É crucial para a fêmea que a prole sobreviva em um ambiente hostil e a família (a garantia do compromisso paterno) é a mais poderosa arma nesse sentido. Já o homem produz espermatozóides suficientes para colonizar um continente sozinho. Se não lhe for cobrado nenhum compromisso posterior, ele pode até fazê-lo apenas para satisfação do desejo momentâneo.
Nos EUA, a colonização foi feita por famílias. Famintas, degredadas sociais pela falta de perspectivas no velho continente, mas, ainda assim, famílias. Onde a figura da mãe era dominante, jogando um papel agregador e motivador para a construção de um novo lar definitivo. Uma visão de futuro: a recuperação da dignidade familiar na nova terra dependia da riqueza que se pudesse construir pelo trabalho. A ética protestante é um elemento facilitador, sem dúvida.
Ora, a colonização do Brasil, assim como a da Austrália, diferentemente da americana, foi essencialmente masculina. Aventureiros e mandatários degredados que, distantes dos vínculos afetivos, familiares e sociais em que foram criados, construíram novos vínculos, mais por necessidade e interesse do que por escolha. O português “se unia” às índias (assim no plural) “em pecado” e as enjeitava como símbolo deste pecado, bem como aos frutos dessa união eminentemente carnal, consumada sem respeito pela parceira. Nessa família mestiça, o pai era a figura dominante, dada a superioridade cultural. Um pai com remorso, saudoso, aventureiro, temporário, voltado para o passado, para a terra à qual voltaria com as burras cheias e a alma vazia. Um pai cuja visão de futuro era a de um retorno ao passado. Uma mãe criança, só vivendo o presente, inocente e tragicamente sem expectativa, sem futuro. Essa preponderância do macho sem vínculos familiares, mais tarde, se reproduz na relação com a escrava negra. O erotismo se sobrepõe ao respeito e ao compromisso na noção de amor brasileira, com profundos reflexos na família como instituição.
* Texto originalmente publicado no Baguete em 22/09/2003 e posteriormente no livro “O Entregador de Sonhos”