Doenças da Segunda Modernidade – e uma proposta de solução

A livre circulação de ideias, mercadorias e pessoas é a ideia mater de dois sistemas. Ela é o cordão umbilical que liga o sistema econômico do capitalismo ao sistema político da democracia liberal dentro de estados nacionais, bases da primeira modernidade. Entretanto, este genoma carrega em si algumas doenças congênitas que, como sói acontecer, só se manifestaram na segunda modernidade que estamos experimentando:

  1. O aumento da produtividade pelo desenvolvimento tecnológico.
  2. A concentração da riqueza, da densidade populacional e do conhecimento.
  3. A globalização dos mercados e da informação.
  4. O esgotamento dos recursos naturais.

O paradoxo da produtividade foi muito bem colocado por Ulrich Beck.

“De um lado o trabalho é o centro organizador da sociedade ao redor do qual tudo e todos giram e no qual buscam seus fundamentos; de outro lado tudo é feito para eliminar tanto trabalho quanto possível. [] O homem, é claro, sempre usou o conhecimento para tornar o seu trabalho mais fácil, mas no passado ele era apenas um auxílio. Agora o conhecimento está tomando o lugar dos trabalhadores, e as pessoas são alistadas a serviço do conhecimento. Tanto dentro como fora do cérebro humano, o conhecimento é responsável por uma rapidamente crescente parcela da criação de valor.” (Beck, 2000, pp. 24-25)

Se o trabalho nas suas diversas formas é a fonte de todo valor, a segunda modernidade retira de uma crescente parcela da população o seu valor como pessoa, reduzindo-a à condição de consumidora, cujo único mister é dedicar tempo e esforço para comprar o que foi produzido pelo trabalho de outrem. E, para aqueles que são excluídos do mercado, a mendicância e a caridade são as únicas alternativas para a sobrevivência se não forem criados programas de renda mínima.

A lógica da acumulação sempre acompanhou a humanidade seja por uma justificada salvaguarda contra a incerteza futura, seja por uma ganância insana. Associada ao aumento da produtividade, entretanto, a acumulação produz necessariamente concentração e desigualdade. Já coloquei isso anteriormente.

“O aumento da produtividade trouxe também o aumento da desigualdade[1]. Todos vivem melhor do que antes, mas alguns vivem muito melhor do que outros. O sucesso atrai o sucesso e num processo realimentado de concentração, a maior produtividade dos mais dotados torna-os cada vez mais bem dotados[2]. A cada onda de desenvolvimento, o processo produtivo se acelera e a competição aumenta. Os profissionais mais qualificados migram para os centros do processo, aguçando a competição e aumentando a desigualdade entre o centro e a periferia. Para esses centros converge também o capital, e o aumento do consumo funciona como mola propulsora da, e compensação psicológica para, a pressão competitiva. [ ] Se a pressão é maior no centro do vórtice, há uma dor psicológica para quem está à margem ou nas camadas mais exteriores do processo. Ao gerar menos renda, sentem-se comparativamente “piores”. Ao consumir menos podem experimentar carência do supérfluo mesmo já tendo o essencial. E podem invejar quem tem mais ou faz mais [3].” (Wagner, 2020, pp. 18-19)

Apesar da abundância de meios e de capital, a sua má distribuição gera carências nas zonas periféricas – tanto carências do essencial, quanto do desejável, como até do supérfluo.

A Revolução da Informação, o desenvolvimento dos meios de transporte e o crescimento das empresas, entidades civis e organizações criminosas para além das fronteiras nacionais são as facetas mais visíveis da globalização. Seus efeitos são uma diminuição do poder dos estados e governos nacionais como forças políticas e a emergência ou consciência de questões supranacionais (clima, pandemias, crime, regulação da internet) sobre as quais os organismos multilaterais ou multistakeholders passam a atuar de uma forma relativamente pouco eficaz e mal coordenada. Ora, se o conhecimento é mal distribuído, a informação é distribuída[4]. Buscam-se consumidores em todo canto. Assim, a consciência das diferenças é generalizada e as ondas migratórias das periferias para os centros, acima da capacidade de absorção dos mercados automatizados, põem em cheque a ideologia liberal, e as barreiras e conflitos se acentuam, não apenas entre ricos e pobres, mas também entre culturas. Diante disso as propostas de solução política que se apresentam são de duas naturezas. Uma, tachada de esquerdista, propõe a criação de programas de renda mínima, que requererão necessariamente uma maior taxação dos ricos. Outra, caracterizada como direitista, quer a contenção das populações e culturas periféricas nos seus locais de origem. Excluo deliberadamente as soluções de confronto violento com a proposta de revoluções anti-establishment pela esquerda e a proposta de eliminação pura e simples das minorias pela direita.

O aumento populacional é ao mesmo tempo motivo e consequência da maior produtividade propiciada pelo desenvolvimento tecnológico e pela globalização dos mercados, que livraram a humanidade dos limites naturais impostos pela disponibilidade imediata dos recursos naturais. Visando o conforto do homem, a indústria continua transformando a Terra como se os seus recursos fossem infinitos. De outro lado, a consciência ecológica dos efeitos colaterais do desenvolvimento emerge como uma nova ética que vai além do humanismo positivista, colocando no centro das atenções não apenas a vida humana, mas toda a vida na Terra.

Diante deste cenário devemos enfrentar os problemas que se apresentam de forma realista e pragmática, sem apelar para a ilusão das soluções extremadas e messiânicas alimentadas por visões utópicas ou distópicas. A utopia mais disseminada é a da singularidade transhumana, que prevê uma expansão da inteligência para o nível molecular, alimentando as fantasias das mentes mais “científicas”. Os humanistas, por seu turno, talvez alimentado pela visão idílica de uma estabilidade perdida, alimentam a visão distópica de uma Terra depauperado em que todos lutam contra todos ao estilo Mad Max.

Se não deixei claro meu ponto de vista quero explicitar que este texto advoga a favor da criação de programas de renda mínima.

Bibliografia

Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. (P. Dentzien, Trad.) Rio de Janeiro: Zahar.

Beck, U. (2000). The Brave New World of Work. Cambridge, UK: Polity Press.

Marx, K. (2002). Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret.

Wadhwa, V. (13 de janeiro de 2012). The Face of Success, Part I: How the Indians Conquered Silicon Valley. Acesso em 10 de maio de 2015, disponível em Inc.com: http://www.inc.com/vivek-wadhwa/how-the-indians-succeeded-in-silicon-valley.html

Wagner, J. (maio de 2020). Tempo e Razão – Três Disciplinas da Vida Racional (5-12 ed.). Porto Alegre, RS, Brasil: PowerSelf Ltda.

[1] Estima-se que a renda per capita na Europa no século XVIII não era mais de 30% do que a da Índia, África ou China, passando a ser 11 vezes maior do que a dos países mais pobres por volta de 1870 e chegando a 50 vezes em 1995.  (Bauman, 2001, p. 177) .

[2]  Em 2006 mais da metade das startups do Vale do Silício tinha estrangeiros como fundadores, sendo os indianos a maioria (Wadhwa, 2012). A evasão dos melhores cérebros formados nas áreas periféricas para os centros mais desenvolvidos só faz aumentar a desigualdade.

[3] Marx já notava isso: “O rápido crescimento do capital produtivo demanda o crescimento rápido da riqueza, da ostentação e das satisfações sociais. Por isto, mesmo que as satisfações do trabalhador tenham aumentado, a gratificação social que proporcionam diminuiu em comparação [grifo meu] com o aumento das satisfações do capitalista, inacessíveis ao trabalhador. As nossas carências e satisfações têm origem na sociedade; podemos medi-las, portanto, em relação à sociedade; não as avaliamos em relação aos objetos que servem para a sua satisfação. Possuem uma característica relativa.” (Marx, 2002)

[4] Entendo que informação é dado + significado e que conhecimento é informação + valor.

2 Comment

  1. Marcos Antônio Casagrande says:

    Caro Jaime, a obviedade das assertivas de teu texto efetivamente não deixam dúvida alguma. Sim, ficou claro teu transitar entre liberalismo e social democracia (lembra-te, que isso não é ofensa, afinal, “O problema com o mundo é que os estúpidos são excessivamente confiantes, e os inteligentes são cheios de dúvidas”, segundo Bertrand Russel.
    Na verdade, quando ao final destacas que advogas pela renda mínima, confirmas uma postura que em hipótese nenhuma pode se chamar de liberal ou no contraponto, comunista. Este é um dos pilares da social democracia, que (infelizmente) tenho visto pessoas com formação superior, chamar de comunismo ou socialismo.
    O mundo, caminha sim, ao meu humilde ver, para um Regime social democrata, com divisão mais adequada de riquesas. Tenho dito há anos, que um liberal, que acredita numa “mão invisível do mercado” controlando de maneira justa, o mundo, é na melhor das hipóteses tão ingênio quanto um comunista que acredita na “igualdade total entre os homens”.
    Na verdade os dois estão nos extremos poluídos por preconceitos e filosofias repletas de extremismos irresponsáveis. Aliás, há anos não ouvia tanta asneira sobre liberalismo e comunismo, quanto na últimas meia dúzia de anos, por parte de radialistas e personagens do ramo empresarial.
    Sim, a renda básica universal é um primeiro passo para chegarmos ao ponto onde hoje estão os países nórdicos, seja qual for a denominação que se de a estes.

  2. Muito bom Jaime, parabéns. Neissan

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